terça-feira, 4 de novembro de 2014

Garota Exemplar

O que faz uma pessoa escrever em um blog?

Talvez uma vontade de que algum dia suas palavras façam sentido para alguém, enquanto organizamos (ou dira melhor, criamos) o nosso pensamento.

Faz muito tempo que não escrevo sobre filmes, mas ontem assisti a um que não poderia deixar de comentar. Também não quero fazer desse lugar um espaço de uma linha de pensamento contínua, exata, que me representa. Como diria Arnaldo Antunes, "eu sou volúvel, não tenho compromisso". Então arriscarei compartilhar algumas ideias que pipocaram com vocês. Isso não é uma tese.

O filme em questão é "Garota Exemplar".



Como o descreveria: uma mistura de drama psicológico de um casal, suspense, policial e terror ao mesmo tempo. Se você pretende ver esse filme antes de saber qualquer coisa, pare agora mesmo.

A verdade é que fiquei muito chocada com ele. E acho que fala muito sobre o nosso tempo. E sobre uma crise dos casamentos.

Resumidamente, é a história de um casal em que a esposa é uma sociopata e que, ao descobrir que o seu marido a está traindo com uma aluna de 20 anos, fingiu para os vizinhos que estava grávida, foge e cria pistas falsas para a polícia acreditar que ele a matou . Num determinado momento da trama, o marido percebe o que aconteceu e percebe que está num estado em que há pena de morte. Depois de ouvir o seu marido na televisão dizendo o quanto a ama e que se arrepende de a ter traído, a moça, que estava vivendo com um ex-namorado da época do colegial na sua casa do lago, corta a sua garganta enquanto estavam na cama e volta a casa em que vivia com seu marido, ensanguentada, dizendo a todos que na verdade foi sequestrada pelo ex-namorado maluco do colegial (realmente, era meio maluco também) e os dois, marido e mulher, voltam a viver juntos sobre o mesmo teto. O final disso tudo, gostaria de comentar depois.

Para a faculdade (faço pedagogia), li partes de um livro chamado "cultura infantil". Nesse livro, um dos autores usava filmes com crianças terríveis ou que tinham que "se virar" como adultos para falar sobre como a geração dos pais e dos filhos se distanciou com os pais tendo que trabalhar por tanto tempo fora de casa, o que os levava a se distanciarem culturalmente. E levava os pais a terem medo de seus próprios filhos. Usou como exemplo o filme "Esqueceram de mim", em que o personagem principal era uma criança de certa forma abandonada pelos seus pais e que conseguia fazer tudo por si e filmes de terror em que o monstro, por assim dizer, era uma criança, como "O Exorcista". Da mesma forma, acredito que esse filme fale do medo dos homens de encarar um relacionamento como o casamento.

Seria um medo também feminino?

Acho que deixarei essa questão em aberto. Claro que as mulheres tem medo de se relacionar, de se entregar a uma relação, de se machucar, e que muitas vezes caem de cabeça e se ferram num relacionamento (experiência própria). A mulher representada nesse filme não é uma mulher real, mas uma ideia. A mulher representada sabe exatamente o que  quer, e sabe exatamente como conseguir o que quer. É decidida, louca, bonita e extremamente inteligente. Essa mulher, meus amigos, essa ideia de mulher, está intrinsecamente ligada às nossas conquistas feministas. E ao medo de o feminismo virar o que não se propõe, um machismo ao contrário.

No carro, de volta pra casa do cinema, vínhamos discutindo eu, minha mãe e minha irmã. Só mulheres, e chocou muito todas nós. Discutimos como esse filme se parece, na verdade com uma história bem mais antiga. Medeia. Essa mulher capaz de chegar aos limites, de matar os próprios filhos para conseguir a sua vingança. Como medeia, a protagonista pretendia dar um fim na sua vida ao final de tudo. Mas foi além. viveu e conseguiu o que queria: ficar casada, e ter seus filhos. Medeia é fichinha para Amy, a mulher do século XXI. Ela consegue a sua vingança na vida. Aliás, acredito que quando volta para o seu marido, não se trata mais de vingança. Quando ela ouve sua declaração de amor, o perdoa. Ela queria apenas casar-se. Claro, de uma maneira completamente sociopata e maluca. É uma mulher sem limites para conseguir o que deseja. A sua moral é satisfazer-se.

O homem não mais faz o que quiser. A sua traição conjugal lhe custou muito caro, o que antes, historicamente, seria visto como algo até aceitável por muitas mulheres. Ele assinou um contrato e não pode voltar atrás, não pode quebrá-lo e não pode dar suas puladas de muro. Acabou a sua liberdade. Veja. o medo masculino de assumir compromisso. E, realmente, se as mulheres fossem todas Amy, sendo homem eu não me casaria. Mas fato é que durante inúmeras gerações, os homens foram um tipo de Amy para as suas mulheres. No filme, o marido era apenas um objeto de desejo, perdeu suas vontades, perdeu a sua forma, assim como acontecia com as mulheres que se casavam. Ou as representadas nas propagandas etc. Por isso que esse filme representa um machismo ao contrário. Por isso, esse filme fala do medo das relações atuais.

Gostaria de chamar atenção para mais um aspecto que vem me interessado muito nos relacionamentos, talvez a origem das nossas crises. O marido, Nick, representa um homem que perdeu sua liberdade. Seus contornos. Amy, a ideia de mulher do século XXI, que tomaria o lugar dos homens nos relacionamentos, detém todo o poder e decide tudo. Que tem as ideias. Qual é a questão de fundo, aqui? Identidade, subjetividade, desejo, liberdade. Nick deixou de ser uma pessoa autônoma. E isso, caros amigos, é o que temos mais de precioso hoje em dia. Naturalmente, nos horrorizamos quando alguém perde a sua liberdade, e, diga-se de passagem, principalmente um homem! E nós, mulheres, com o feminismo, lutamos pela mesma coisa: sermos nós mesmas, donas do nosso desejo, do nossos corpos, e não o objeto de ninguém. Realmente, não haveria outro lugar para os relacionamentos se não a crise. A mulher não vai mais ocupar esse lugar. Veja, com essa minha crítica, não quero julgar se é bom ou ruim como estamos construindo essas novas relações hoje, mas será que poderíamos chamá-las assim? Vejo uma ânsia desesperada, e ilustrada por esse filme, de não abrirmos mão de nada que consideramos nosso, nossos desejos, nossas personalidades. Isso deu origem a um filme te terror! Será que só conseguimos pensar nas chaves livre-prisioneiro, autônomo-subalterno? Será que seguir as nossas vontades individuais nos faria tão livres assim? Será que não haveria outras formas de enxergarmos os relacionamentos?

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